Ontem, entre o momento em que desci do ônibus em direção à minha casa, presenciei um milagre. Faltavam poucos metros para chegar ao portão. Ainda que poucos, os metros que separam o ponto de ônibus de minha residência sempre tiveram um grande poder para me cansar, mesmo que brevemente. Andava na calçada do lado oposto ao de meu condomínio, pois o trecho entre onde desço e a entrada não possui uma calçada decente e, naquele dia, ser atropelado não estava nos planos.

No meio do trajeto, para, assim, no meio da rua, uma caminhonete marrom clara, bem antiga, mas conservada. De dentro dela saiu uma voz serena, mas clara e audível. Ao chegar a mim, os sons viraram-me o pescoço e permitiram-me pintar com gentileza o rosto do senhor idoso que me chamara. Vestia um boné surrado e uma camisa social branca relativamente gasta. Ao seu lado, uma senhora aparentemente mais nova ocupava o único outro lugar do veículo e tingia-o com um vestido florido, que destacava-se em relação ao estofado bege do carro.

Ele me perguntara se eu estava subindo a rua, conjuntamente com um indicador grosso e cheio de calos e rugas apontando a direção. Eu, aturdido pela situação inusitada e surreal que se me apresentava então, só soube responder que sim.Ele fechou os dedos, deixando o dedão erguido formando um sinal de positivo e apontou para a caçamba, dizendo: "Sobe aí, fio! Te dou uma carona até ali em cima!". Atravessei a rua e, sendo bastante congruente comigo mesmo, subi na caçamba todo desajeitado e, como não podia deixar de ser, quase caí. Quando finalmente me ajeitei, disse ao generoso motorista onde ele poderia parar o carro logo adiante. Depois, o barulho do motor usado tomou conta da paisagem arborizada. E, ainda assim, havia um silêncio inaudível no ar.

Quando desci do veículo e atravessei o portão, senti uma paz alegre. Esquecendo-me de ter medo, recordei-me da gentileza que existe na humanidade. O espaço público da rua deixou de ser uma selva de pedra, ainda que apenas durante algumas horas. Havia tanta beleza concentrada num gesto tão simples, tanta inocência naquela situação que chorei com felicidade que transbordou as fronteiras dos olhos. Nunca senti tanto prazer no cansaço que me tomou ao chegar em casa, depois de subir a ladeira que separa meu lar da portaria, onde foi sutilmente deixado minutos antes.

Qual foi o ponto em que nos perdemos de nós mesmos? Quando esquecemos de reconhecer-nos nos outros, naquilo que é diferente e oposto ao que somos? Quando é que outro humano perdeu, para nós, sua humanidade e passou a ser uma ameaça, uma besta selvagem temível? Onde foi parar a sensibilidade e o cuidado para com pessoas que, supostamente, não nos são família? Supostamente, sim, pois somos todos claramente ligados de alguma forma. Não tenho respostas para tais perguntas, mas talvez só esteja tudo muito bem escondido dentro de cada um. Este senhor de semblante pacífico e sereno me lembrou de tal fato. E, ao lembrar-me, eternizou-se dentro de mim. Queria poder ter-lhe agradecido mais, no momento. Mas agradeço-o assim, humilde e simplesmente. Creio que seu gesto não esperava retribuição, de tão honesto, então isso deverá bastar. Obrigado, senhor que não conheço o nome e me foi gentil a troco de nada além de gentileza. Que a calma de seu espírito ainda chacoalhe muitas vidas, como o fez comigo. Tomei uma carona de poucos instantes de duração e, ainda assim, aprendi mais a ser humano ali e então do que em vários outros momentos duradouros da vida. Tente dar uma carona você também. E se você entendeu bem, pra essa não é preciso de C.N.H. ou carro.