Eu quero uma vida que não passe em branco, muito menos em tons de cinza. Quero que as cinzas voem quando meu corpo for retornado à Terra, depois de ser cremado nas chamas de um crematório. Quero que até em meu último ato nesta vida, as coisas sejam permeadas pela cor, pela coloração laranja dos fogos. E que enquanto eu viva, eu arda em pleno inverno e incendeie o chão de minhas amizades. Que elas possuam raízes fundas. Eu quero uma vida que não passe em branco, muito menos em tons de cinza. Quero que o branco esteja presente apenas naquilo que merece ser cândido. Naquilo que é puro pela própria essência. Quero que a vida seja uma cabine de trem, lotada de pequenas coisas cheias de simbolismo. Sem sincretismo, apenas originalidade fruto de honestidade histórica. Quero que sobre fumaça nos lugares por onde eu passar, sabendo que algo dali irei levar para minha cabine de trem. E nessa cabine, eu quero viver uma vida que não passe em branco, muito menos em tons de cinza. Quero que isso seja apenas parte do título de um livro bobo que se encontra em qualquer estação. As letras saiam esparsas, calmas e pacientes, esperando o tempo de meu eu lírico. O que quero da vida é seu querer, bem ou mal, seu renascer no sol de cada dia e na lua de cada noite. Que as penumbras fiquem evidentes, para que escolha o caminho que preferir, seja o da luz ou da escuridão. Amai-vos uns aos outros, pois não tendes muito tempo.
Envelhecer é tornar-se mais história que futuro. Ninguém lhe ensinará, mas você provavelmente aprenderá que é você quem escreve a sua. Envelhecer é descobrir que você tem um passado. É correr em direção a uma fresta rochosa e ver a vida afunilando. E, ainda assim, estar cada vez mais próximo da luz no fim do túnel. É estar cada vez mais próximo da saída da caverna. Quanto mais fundo você cavar, mais próximo dos céus chegará. É tirar fotos de instantes para sempre perdidos no mundo e eternamente cristalizados na parede da memória. Envelhecer é o ato de viajar por uma cabine solitária de um trem em que você sobe quando nasce e só desce ao morrer. É desejar incessantemente o inatingível. É frustrar-se pelo que aconteceu e perceber quão bom isso é. É dobrar-se perante o tempo enquanto dobra a própria realidade existencial daqueles que te acompanham. É lidar com o não saber, questionar o indizível e realizar a própria fragilidade. É ver-se debulhando filosofias que não domina e, ainda assim, agradar os ouvintes. É o tragar lento da fumaça da vida. É experimentar o desenrolar de fios enquanto eles fortificam o seu vocabulário. É tecer a roupa de cada dia com o próprio suor. É enfrentar o diferente com a mesmice e, então, mudar o mesmo. É entender que a originalidade da vida está justamente na reciclagem do mais do mesmo. É ver poesia em janelas de ônibus e viajar sem destino, passando por lugares incríveis e tempos inesquecíveis. É voar aterrisando no nada. É coisificar o éter do espírito. É transformar o não em sim. Viver é amar o que não existe fora de si. É assistir ao queimar de uma vela num quarto escuro. É enxergar no por do sol a possibilidade da noite fria e, frente a ela, agasalhar-se com o suéter da alegria. É compreender o sofrimento alheio, tomando-o como realidade concreta. É cozinhar um bolo para comer com os amigos. É enxergar na família a única coisa concreta da finitude da existência. É ir contra as leis da física e criar-se à medida que se existe. Viver é morrer. De rir, de fumar, de beber, de cagar, de comer... Enfim, viver é morrer de tanto viver...
Viajar numa cabine de trem é, em suma, envelhecer-se apreciando o mundo. Aproveitar cada segundo não como se fosse o último, mas como se fosse o primeiro. Esquecer-se de si mesmo na relação com o outro, seja uma pessoa ou um bosque. Esquecer-se de que aquilo já foi vivido, cada momento é único e lastimavelmente instantâneo. Expandir-se circularmente em direção às estrelas que nos cobrem de luz na floresta escura da viagem curta. Deita-te na grama com o orvalho noturno, olhas para cima e percebes o quão ínfimo e, paradoxalmente, infinito tu és. Nesta vida, eu quero sentir o frio das manhãs frias de agosto e apreciar a neblina que a caracteriza, sentado num bosque durante uma manhã congelada, em que o mundo se torna fotografia de meus olhos, em que a música que ouvem meus ouvidos é feita pelos pássaros pousados nos galhos das árvores com folhas secas. Quero olhar através dos olhos de alguém, enxergar sua alma, toda a beleza que ela contém e o chorar de reverência com a aura que escapa aos limites do corpo, numa demonstração de que cada um é o próprio Sol. Quero atrair e ser atraído, quero chocar-me contra os corpos, esbarrando nas vivências, sabendo que fugazmente desaparecerão na manhã seguinte, dando lugar a uma sensação de olhos cheios de areia pelo pouco sono. E por mais desprazerosa que seja tal sensação, ela será também gratificante, porque indicativa de que a vida foi vivida. Quero beijar o mundo com os pés, voar nos quatro ventos, assumindo-me como bússola de mim mesmo, mapeando a vida que quero viver, naufragar nos oceanos das paixões sem medo de me afogar, descobrindo como se nada em meio a tantas frustrações e felicidades desse mar de minha existência. Quero lembrar meus esquecimentos, simplificar a felicidade, ver a alegria no florescer estático e nada eufórico de uma árvore durante o mês de setembro. Perceber que o mundo muda na medida em que nós mesmos mudamos, sentir saudades do não vivido, impor-se contra o que faz mal a mim e aos humanos que ainda não notaram a sutileza da flor de setembro. Quero continuar arrepiando-me ao som de músicas, sentindo as lágrimas vindo vagarosamente aos olhos, vendo os pingos caírem da janela de minha alma. Quero resgatar a simplicidade do belo, regar as crianças com esperança de um mundo melhor e debater com os adultos o que de fato realmente importa fazer durante esta viagem e, principalmente, como fazê-lo. Quero ajudar gente. Quero ajudar, gente. Quero ser o paraíso de alguém, se possível, de alguéns. Só isso.
Ah, mundo... Por que tão rápido? Por que tão fugaz? Esta vida escapa-me pelas mãos a cada inspiração do mesmo ar que me permite viver. Aonde foi parar a calma? Se souberes, avisa-me! Quero encontrá-la, ironicamente, rapidamente! Preciso! Talvez ela esteja bem aqui sussurrando em minha mente: "apenas pare de procurar-me e achar-me-á". Por que tanta dificuldade em resignar-se e aceitar a própria finitude? Talvez porque creia que meu tempo neste mundo será insuficiente para fazer tudo aquilo que desejo, como apreciar as belas manhãs frias de agosto. Seu orvalho, o brilho da relva coberto de água fria, a neblina fria no ar, o vento leve soprando das janelas, o sol ofuscado pela névoa translúcida que só existe para aqueles que acordam antes das 8h. As manhãs frias de agosto sempre foram boas e amigáveis companhias. Sua temperatura é agradável, têm um tom de amarelo acinzentado. E é exatamente isso: ainda que o cinza exista, eu quero viver uma vida colorida. Desde a cor das roupas até a cor da alma, que elas sejam matizadas pelo amor que me transborda para com tudo que vive. E se não for pedir muito, quero poder partilhar minhas percepções com aqueles que me rodeiam. E, se a audácia já não me falta, expandir circularmente para poder tocar a todos. Ainda que com singeleza. Minha grandeza está nas pequenas coisas que me perpassam durante o dia, nas fortunas de sorrisos que partilho com os que me são benquistos. E se porventura vier a ser reconhecido por qualquer ato que parta de mim, que me lembre da humildade que tenho hoje perante o Outro. Se me permitem, quero encerrar com um trecho bastante simbólico d'O Livro dos Abraços, de Eduardo Galeano, escritor uruguaio recém-falecido:
“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Pai, me ensina a olhar!”