Foi voltando de São Paulo - sim, essa cidade, novamente - que minha inspiração arrebatou-me como costumava fazer tempos antes de me tornar um escravo da faculdade. E, como toda boa inspiração, me fez olhar o mundo com novas lentes, apesar de os olhos ainda serem os mesmos. A mudança foi tímida, mas sensível; tênue, mas significativa. Quando já estava sentado no ônibus, senti novamente aquele peso em meus ombros, o peso invisível do existir. Começando pelo fato de que não era pra estar naquele ônibus: se não fosse pela minha paciência em ceder, justamente, meu lugar na fila do quiosque a um casal de deficientes visuais na rodoviária (paciência esta que, conforme os longos minutos rapidamente se esgotavam, acabou), não teria perdido o ônibus para o qual comprei minha passagem na primeira vez em que me dirigi ao guichê da companhia de turismo ali perto. E se não fosse também a minha perseverança em ficar naquela fila, esperando pelo atendimento, e arriscando perder o horário da viagem sem saber das consequências de antemão para comprar uma mera garrafa de refrigerante (extremamente cara, diga-se de passagem), talvez tudo isso não houvesse se germinado em mim. Mas, como é possível de ler, obviamente, tudo isso aconteceu. Portanto, o que se lê aqui é pouco mais que a experiência de algumas horas em um lugar que é meu lar abandonado com a companhia de pessoas que me são queridas de maneiras ainda pouco claras para mim mesmo.
Fui de última hora, também. No dia anterior, quando me convidou, meu amigo recebeu uma surpreendente resposta afirmativa. Entretanto, na manhã da viagem, voltei a ser eu mesmo e já tinha decidido ficar em minha casa, no conforto de meu lar, "fazendo o quê" é bom se perguntar. Mas, no fim das contas, acabei mudando de ideia. A possibilidade de retorno (quase) no mesmo dia me alavancou a um banho incrivelmente rápido e depois me jogou atrás do volante do carro que guiar-me-ia até a rodoviária, lugar onde deveria encontrar dois de meus acompanhantes. A terceira pessoa já estava lá e, provavelmente, você já a conhece pelo texto que fiz da capital anteriormente. Depois de um breve passeio na pequena livraria da estação e de um cigarro antes disso, o segundo acompanhante chegou, deveras atrasado, como lhe é de costume - que, por sua vez, é algumas vezes irritante; mas não o foi neste dia, quebrando, de algum modo, seu próprio costume. Pouco depois, partimos.
As horas passadas lá foram boas, como sempre foram naquele lugar, apesar de levemente exaustivas, sendo o fumante sedentário que sou. Valeu a pena ter ido, no entanto. Tudo ali valeu. A caminhada pela Paulista, o metrô, os bares lotados, a cerveja gelada, as porções, as conversas, os cigarros compartilhados... O tempo passado ali foi pouco, mas eternizado de forma desconhecida em minha memória. Ter ido foi uma chave que trancou boas experiências num baú que agora destranco. Ainda que nem todo o conteúdo me seja acessível, tal me foi vivido por mim. Mas, ainda assim, não é por isso que escrevo. Mesmo levando todos esses aspectos em consideração, não foram eles precisamente que germinaram tudo isso. Foram sementes, sem dúvida. Mas a germinação só veio bem depois, quase ao fim - triste e indesejado - da noite. E, como deverá ser em todos os momentos de minha vida exceto o último, os tristes fins transformaram-se em belos inícios, em outras f(r)ases. E escrevo "exceto" em referência ao último instante que passarei nesse planeta com todo o medo, temor, pavor e desconhecimento que tenho direito, afinal ainda estou do "lado de cá".
Começou durante a conversa da qual participava apenas como ouvinte. Em determinado momento da discussão, depois de ter soltado algumas opiniões confusas, resolvi colocar-me em stand by para poder absorver o que estava sendo dito de maneira mais proveitosa. Recostei-me à cadeira de madeira e olhei pra cima. A chuva havia cessado e o que restavam eram nuvens cinzas, alaranjadas pela luz dos postes emanada da metrópole. Quando olhei, porém, para as nuvens, era como se olhasse para um espelho quebrado. Parte delas refletiam-me e, numa outra parte, bem ínfima, aparecia a figura invisível de um ser. Quase que completamente imaginado por minha mente já bêbada, mas que, de alguma forma, era por certo estar ali. Quando o vi, perguntei mentalmente se nos via. "Do you see us?", I asked. Não houve resposta. Ou houve. Só sei que não sei descrevê-la. Mas a senti, com certeza, nos arrepios já conhecidos que percorrem-me inteiro. Como se meus poros fossem escancarados para a existência, pela existência. Quando meu melhor amigo perguntou-me o que estava acontecendo, o que estava pensando, só pude lhe responder que não estava pensando nada, só sentindo. E quando perguntou, então, o que eu estava sentindo, a melhor resposta que podia lhe dar e, assim, lhe dei, foi um silêncio vazio coerente com minha própria perplexidade frente ao que se passava em mim naquele lugar, naquele instante. E foi então que começou.
Quando já estava a sós, em direção à rodoviária, pude concentrar-me um pouco mais em mim mesmo. Essa atenção atingiu seu pico quando já estava sentado, confortavelmente, em minha poltrona levemente reclinada no ônibus que me tiraria do meu lar para levar-me para casa. Foi ouvindo o som dos pingos da chuva fraca que me lembrei do crepitar de uma fogueira já quase totalmente consumida. E foi lembrando disso que fascinei-me com como as curvas percorridas pelo veículo na estrada pareciam-se com as escolhas que fiz, faria e deixei de fazer e nunca farei, por ser eu mesmo, para continuar sendo eu mesmo e por nunca ter sido ninguém mais. Cada sim e cada não que disse e direi serão as curvas que estarei desenhando na estrada de minha existência. Algumas serão bruscas e fechadas, outras darão lugar a grandes retas aparentemente intermináveis, mas sempre com faixas paralelas, nas quais poderei apenas vislumbrar como "teria sido". E durante esse filme que foi essa jornada de volta também vi carros ultrapassando e sendo ultrapassados pelo ônibus. Eram as pessoas que deixei e terei que deixar, que me deixaram e me deixarão, que me deixariam mas talvez não, se... Se somente... As curvas de meu passado forjarão meu futuro nessa estrada sem saídas. Mas a percorro com olhos feito janelas, celas que me prendem dentro de mim, as chaves jogadas fora quando nasci, condenando-me a conviver comigo mesmo eternamente durante essa efêmera viagem no tempo. É proibido estacionar, como em toda estrada. E se eu o fizer, serei provavelmente jogado contra o acostamento pela vida mesma. Não sabia que sabia disso, mas devo ter sabido, afinal foi isso que me fez ir. Evitei a morte justamente arriscando-me a tropeçar quando muito bem em casa podia ficar, sentado, vendo a vida passar. Não parei no acostamento. Comprei uma passagem, entrei no ônibus, e fui. E se houve volta, com certeza não foi para o mesmo lugar de onde saí. Como disse, a estrada não tem saídas e retornos, só segue em frente, fazendo com que eu enfrente, de frente, o que vier pela frente. E na janela de meu assento vi reflexos das luzes das cidades por onde passava. São as experiências, lindas e infinitas, que vivi, vivo e viverei. O passado, o presente e o futuro, ali, então, se condensaram em uma grande nuvem de fumaça. Talvez o ser que residia nas nuvens; talvez as próprias nuvens, que, elas mesmas, se desfaziam e transformavam-se em chuva; talvez nada. Seja quem ou o quê fosse, me permitiu, por um instante apenas, entrever, fugazmente, por formarem uma tela cinza para minhas projeções, um pouco mais do que efetivamente era visto pelos outros que ali vagavam.
A última visão e, talvez, a mais importante, foi a dos sapatos amarelos. Os sapatos eram brancos, na verdade. Mas a luz que vinha do chão do ônibus tingia-os com um amarelo alaranjado, quase como se aquela cor estivesse cansada demais para exercer todo seu brilho. Eram calçados por uma mulher na fileira ao lado que, assim como eu, viajava desacompanhada. Os sapatos assumiram posições meigas durante toda a viagem. Bom, pelo menos durante o pouco tempo em que os observara, pareciam-me de tal forma meigos. Entretanto, o que me saltou às vistas era que estavam secos. Quando estava já no segundo bar da noite, bebendo novamente, começou a cair uma garoa tipicamente paulistana. E, no meio de tantos lugares daquela paulicéia futurista e, ao mesmo tempo, contemporânea, eu estava sob uma laje e uma árvore que, quase como que colocadas ali de propósito, guardavam meu lugar da chuva. Então, assim como os sapatos amarelos, eu também estava seco. Mas foi quando pensei por onde eles andariam que, assim como eles potencialmente se molhariam, meu rosto mergulhou-se em lágrimas liquefeitas por aquele baque inaudível daquela experiência única. E deixei as poucas lágrimas correrem, pois sabia que a chuva é algo menos amedrontador que as nuvens que a precedem, afinal, quando a chuva cai é possível ver os pingos, senti-los no rosto, vê-los molhar sua roupa. As nuvens são pingos ainda não formados, assim como meu futuro. São pingos esperando o momento certo para caírem no momento exato e perfeito para molhar justamente quando tudo o que você precisa é ficar seco. As nuvens cinza de um céu são a mesma coisa que se sente logo antes de mergulhar partindo de um lugar seco, como se fossem exatamente o vento que bate durante um salto alto da beira de uma montanha em direção ao mar. As nuvens são o "chover-a-ser", assim como é o presente que vivo em relação ao futuro que, quase como um castigo do agora, deverei viver. E tal como o futuro, nunca se sabe onde ou quando cairão aqueles pingos condensados. Só se sabe que cairão. E só se sabe isso pois já caíram, em outros momentos, em outros agora's, que, por sua vez, viraram esse futuro atual que experiencio de maneira singular por ter bebido dos pingos certos nas horas certas.
Enfim, foi assistindo a como aquelas ruas, cheias de luzes, olhos verdes, cabelos loiros e cigarros eram assombradas pelas mãos sujas, dentes podres e catarros daqueles que, frente aos faróis dos carros, sobreviviam como podiam. Não pude deixar de notar as faces negras daqueles que vagavam perdidos como cães naquela cidade de homens. Os trapos que vestiam, muito mais usados que as roupas de marca que passavam e, por um momento, ocultavam os rostos daqueles que, junto com sua identidade, já os haviam perdido há tempos. E quando demonstravam suas raivas, quebrando copos, amassando latas ou dando um sorriso irônico por suas próprias condições, eram vistos como animais. Causavam medo e, ao mesmo tempo, entretinham os transeuntes por lembrá-los de como deveriam agradecer - a seja lá o que fosse - pela ilusória sensação de conforto que possuíam. Ilusória, pois só existia por causa da dor daqueles bichos. E, assim, percebi o quão distante estava daqueles seres quase etéreos e invisíveis a todo o mundo. Questionei-me se meus questionamentos eram fúteis perto daquelas vidas que nem vidas eram, se minhas preocupações sobre com quem(ns) passaria minha vivência eram válidas comparadas a tanto sofrimento. Porém, quando cheguei em casa, disso tudo me esqueci, pois havia, logo ali, uma cama pra dormir.